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A produção animal como caminho para a sustentabilidade dos sistemas orgânicos
16/09/2020

*Por Flávio Figueiredo

 

A produção orgânica concebe a preservação ambiental com estímulo à biodiversidade, um manejo regenerativo do solo e a produção de alimentos seguros, gerando a obrigatoriedade da construção de sistemas sustentáveis de produção. Neste contexto, a produção animal pode desempenhar um importante e fundamental papel. Como exemplo, a pecuária desenvolvida em campos nativos pode ser considerada como um modelo para estruturação de um sistema de produção animal orgânica. Os principais atributos desse sistema são o bem-estar animal, a conservação e promoção da biodiversidade, a ciclagem espontânea de nutrientes do solo, a conservação da cultura e da qualidade de vida da população envolvida e, sobretudo, a produção de alimentos seguros e de alta qualidade, os quais consolidam a sustentabilidade dessa atividade em diversos biomas.

 

Considerando a realidade atual do Brasil, o número de propriedades orgânicas que incluem produção vegetal é muito maior quando comparado àquelas que exploram a produção animal. No entanto, muitas dessas propriedades de produção vegetal exclusiva apresentam dificuldades em construção de sistemas sustentáveis. Um dos fatores mais corriqueiros é a necessidade de “importar” fertilizantes biológicos, como o esterco de aves, de outros locais para suportar seus sistemas de produção vegetal. Quase que invariavelmente, esse material é oriundo de sistemas convencionais de produção animal, onde os “quimiosintéticos” são utilizados rotineiramente.

 

A compra desse material traz consigo inconvenientes importantes, tais como o impacto ambiental do transporte dos produtos, a possibilidade de introdução de contaminantes indesejáveis na propriedade, a necessidade imperativa de ciclagem biológica adequada desse material e um controle de resíduos contaminantes, como os metais pesados muitas vezes presentes em proporções não permitidas. Vale ressaltar que esta é uma alternativa tolerada pela legislação brasileira devido à carência e dificuldade na obtenção de fertilizantes orgânicos de qualidade pelos produtores(!). Considero essa dependência do esterco de aves de origem externa para as propriedades de produção orgânica uma ação desaconselhável.

 

Nesta lacuna, a inserção da produção animal pode ser considerada como uma importante alternativa. A obtenção de fertilizantes a baixo custo, a ciclagem de nutrientes e o aproveitamento de restos de culturas, consorciados com a produção de proteínas de alto valor biológico, são fatores importantes e que podem estabelecer uma solução natural entre a inconsistência e a sustentabilidade de uma propriedade orgânica.

 

A produção de biofertilizantes nas propriedades, tendo como base o esterco fresco de bovinos, é uma prática consolidada na produção orgânica e serve como exemplo quando se almeja melhorar a qualidade biológica dos solos e aumentar a biodisponibilidade de nutrientes para as plantas. Através de inoculação de microrganismos vivos, presentes no rúmen dos bovinos sobre uma enorme variedade de substratos, consegue-se transformar resíduos da produção em produtos “ricos”, os quais podem ser usados como adubos e viabilizar a ciclagem de nutrientes dentro da propriedade, extinguindo a necessidade de compra de fertilizantes. Essa prática, no entanto, só se torna possível com a presença de bovinos na propriedade.

 

A produção de suínos pode trazer diversas vantagens para a propriedade orgânica. Os porcos, além de aproveitarem muito bem uma diversidade de subprodutos vegetais oriundos dos cultivos da propriedade, podem ser criados em consórcios com áreas de florestamento sem impactá-los negativamente. Além disso, servem de “aeradores” e “reviradores” nos processos de compostagem da propriedade, podendo suprimir a atividade humana deste serviço.

 

A produção de frangos ou ovos em sistemas de galinheiros móveis desempenha um importante papel na fertilização de terrenos de cultivo vegetal e no controle de parasitas nos locais de pastoreio das galinhas. O conhecido produtor norte-americano Joel Salantin relata que seu sistema de produção de frangos em gaiolas móveis sobre pastagens atinge uma sustentabilidade econômica contabilizando apenas a melhoria da qualidade dos solos onde as aves são manejadas.

 

Na realidade, a presença de animais em sistemas de produção traz consigo a introdução de um novo universo de microrganismos, não só adaptados com o metabolismo de seus hospedeiros, mas também altamente capacitados em interagir com o meio, promovendo e refinando as interações solo/ar/plantas, trazendo mais eficácia nestas relações e, com isso, uma maior produtividade ao sistema de produção.

 

Por outro lado, tem sido fortemente sugerido pela pesquisa cientifica que o incremento do microbioma dos solos é um fator promotor de saúde para a população humana, ressaltando o aspecto imunológico. Em linhas gerais, estas pesquisas indicam que, quanto maior a densidade e diversidade de nutrientes e elementos desejáveis disponibilizados pelos alimentos, maior a capacidade de desenvolvimento de atividades biológicas refinadas no ser humano, muitas das quais só são possíveis de ocorrerem em situações especiais e na presença de alguns elementos, como alguns microminerais já exauridos dos solos nos sistemas convencionais de produção. Estes, comprovadamente, são encontrados em solos de cultivo com um microbioma diverso e saudável.

 

Considerando estas evidencias até certo ponto óbvias para estabelecer sistemas sustentáveis dentro do contexto orgânico, estabelece-se um questionamento natural: por que sistemas de produção animal ainda não fazem parte da maioria das propriedades orgânicas?

 

Tenho tentado entender melhor esta questão e reconheço “gargalos” para implementação da produção orgânica animal, tais como alguns aspectos contraditórios da nossa legislação, a ausência de políticas de inspeção e fiscalização para esta produção, e a dificuldade em adquirir e ou produzir produtos orgânicos para alimentação animal em escala comercial. Sobretudo, creio que algumas das respostas estão basicamente relacionadas à falta de apropriação de conhecimentos específicos por profissionais da área de produção animal capazes de atuarem nestes sistemas.

 

*Médico Veterinário (CRMV/RS 5913), integrante da Comissão de Pecuária Orgânica do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Rio Grande do Sul e produtor de ovos orgânicos.





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